Como o terceiro setor pode contribuir para a equidade racial no Brasil

Como o terceiro setor pode contribuir para a equidade racial no Brasil

17/08/2021 13h38

Fonte: Observatório do Terceiro Setor

No dia 4 de agosto, o Grupo de Institutos Fundações e Empresas (GIFE) promoveu um evento online que integra o Black Philanthropy Month (Mês da Filantropia Negra, em português).


A iniciativa contou com discussões sobre como a filantropia e o investimento social podem ser fomentadores de projetos e ações afirmativas em prol da equidade racial, com o objetivo de saldar a dívida histórica deixada pela escravidão no Brasil e abrir caminhos para um ambiente igualitário.
Essa foi a primeira edição do evento no Brasil.

Criada por Jacqueline Bouvier Copeland e a Rede Pan-Africana de Filantropia Feminina (PAWPNet), a campanha foi pensada com o objetivo de elevar doações aos afrodescendentes. O Black Philanthropy Month (BPM) foi lançado em 2011, em comemoração ao Ano das Nações Unidas e à Década dos Afrodescendentes. Segundo Copeland, nos Estados Unidos, a população negra é a que mais doa para causas sociais.


No entanto, a filantropia institucional destina apenas de 2 a 3% dos investimentos para instituições fundadas por negros. 
“Se queremos combater o racismo, as instituições devem ir além da retórica da solidariedade, mas criar políticas e práticas para tornar o processo real. É preciso destinar apoios incontáveis aos negócios negros promissores”, afirma. 

 

A importância de um fundo dedicado à equidade racial no Brasil


Agora em 2021, o Baobá – Fundo Para Equidade Racial completa 10 anos de existência. Este é primeiro e único fundo dedicado à equidade racial do Brasil.
De acordo com Selma Moreira, diretora executiva do Fundo, a população negra vem se organizando em prol do avanço coletivo desde a época do Brasil colônia e da monarquia.
Essa população também sobreviveu aos horrores da ditadura militar e hoje vive em uma sociedade democrática com diversos regressos e progressos de direitos. 


“O que nos conecta é a estratégia de resistência e estender a mão ao outro. Todo mundo tem algo para contribuir com o coletivo. Aqueles que doam para projetos que combatem o racismo estão engajados na luta para uma sociedade mais igualitária”, destaca Moreira.


O Brasil é o 12º país mais rico do mundo e o 9º país mais desigual. Mesmo após séculos de opressão, a população negra continua resistindo e buscando protagonismo. 
“Os nossos passos vêm de longe. Em uma sociedade escravocrata, as pessoas negras se reuniam para doar afeto, amor e também reuniam recursos financeiros que pudessem contribuir para a construção de uma poupança para a compra de alforria de pessoas escravizadas”, lembra.


Segundo ela, há 200 anos a população negra foi a precursora do financiamento coletivo, ao criar a Sociedade Protetora dos Desvalidos para atender as demandas daquela população. 
“A população negra sempre se organizou e muitas mulheres assumiram processos de liderança. A cura, a ressignificação daquele momento e como era possível desenhar os próximos passos surgiram em uma época em que havia as piores condições de humanidade para a construção de uma sociedade mais justa”, afirma. Para a liderança, o combate ao racismo estrutural é um trabalho de toda a sociedade: tanto dos movimentos negros, quanto das empresas e do Estado.


Durante a pandemia de Covid-19, a população negra tem sido um dos grupos mais afetados. Nesse período, o Fundo Baobá divulgou seis editais, que beneficiaram 621 organizações. 
Moreira afirma que é necessário investir em organizações negras para a melhoria de mudanças estruturais e coletivas, no médio e longo prazo. É preciso também ter a escuta ativa para construir soluções a partir das demandas apresentadas pelas organizações do movimento negro.


As parcerias devem ser justas, para que as lideranças e pessoas que trabalham na linha de frente possam ter a possibilidade do bem-viver: “Estamos lidando com genocídio, fome e desemprego. São muitos os desafios, mas pensar no viver com dignidade é fundamental. Parceiros devem trabalhar com a perspectiva de mudança sistêmica, pois o racismo permeia a base da desigualdade”.

 

A luta antirracista nas organizações do terceiro setor


Para debater a equidade racial nas organizações do terceiro setor, o evento promoveu uma mesa de debate com Adriana Barbosa (Feira Preta), Atila Roque (Fundação Ford Brasil), Gilberto Costa (JP Morgan), Inês Lafer (Fundação Betty e Jacob Lafer e Presidente do Conselho GIFE) e Neca Setubal (Fundação Tide Setubal).


Márcio Black foi o moderador do encontro. Para ele, a filantropia não se trata apenas de entregar doações, mas também entregar amor para essas comunidades negras como uma maneira de curar a dor destes corpos subalternizados. 
“O amor é vida. É sobre ancestralidade e interseccionalidade. Não se pode marginalizar ninguém. A doação é um aspecto fundamental para a cultura negra e o verdadeiro espírito da comunidade”, diz. 
A pesquisa ‘Classe Social e Alocação de Doações no Brasil’, lançada pela FGV em julho deste ano, revelou o contraste de doações entre classes sociais no Rio de Janeiro: as pessoas com alto poder aquisitivo doam menos e para causas menos urgentes, enquanto os mais pobres são mais solidários e doam em prol de direitos humanos básicos, como a causa da fome. 


Durante a pandemia, diversos movimentos sociais negros se tornaram destaque na luta em prol da vida. Entre os exemplos que podem ser citados estão a Frente Nacional Antirracista, a Coalização Negra por Direitos, a CUFA – Central Única das Favelas e o Gerando Falcões. 
Neca Setubal apontou que, ao dar prioridade à causa antirracista, o Brasil está se conectando com uma agenda internacional. Ela aponta que o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, foi um momento crucial para o despertar da consciência social.
“O país passa de uma fala errônea sobre a democracia racial, para uma sociedade que olha para o racismo e se reconhece racista. Com o racismo, não temos democracia. Ao enxergá-lo, podemos pensar em ações concretas”, afirma. 


Gilberto Costa afirma que reconhecer a existência desse problema trouxe o desafio de como o brasileiro e a sociedade enxergam o termo filantropia, as fundações privadas e familiares, e o trabalho de luta por equidade racial.
Ele afirma que agora é preciso ter uma mudança entre os investidores e acionistas para que eles vejam a sua responsabilidade em relação ao apoio dessas organizações: “Os programas eram feitos sem os recortes raciais. Nesse instante, precisamos de recursos. Mudar a questão racial também passa por investimento”.

Inês Lafer ressalta que agora é preciso colocar a mão na massa para mudar a agenda e a dívida histórica do país com a população negra. Para ela, a homogeneidade de homens brancos nos cargos de liderança nos institutos e nas fundações também precisa mudar.
“Se pensamos em soluções só do mesmo ponto de vista, não conseguimos enxergar além. Problemas complexos exigem alternativas para o longo prazo e para isso é preciso ouvir quem está na ponta”.
Adriana Barbosa reflete que, a partir do momento em que os recursos passarem a ser administrados por diferentes atores, existirá a possibilidade de gerar um impacto de forma sistêmica.
Segundo ela, é preciso lidar com as intersecções, entre raça e gênero, e prestar atenção às complexidades estruturantes da nossa sociedade. “Para além das conversas e dos fóruns, é preciso agir para que essa ação tenha impacto nos próximos anos”, fala. 


Já Atila Roque reflete que, apesar do conceito da democracia racial ter ficado para trás há algum tempo, o racismo está mais vivo do que nunca.
“O mesmo fato que nos alegra, que é a urgência destas discussões, também revela o quanto o racismo brasileiro cria insulamento, onde pessoas brancas de recursos conseguem viver um mundo paralelo e não se dão conta do que está acontecendo no país. A violência é secular”.
Ele alerta que a filantropia institucional está mobilizando recursos para ações altamente privilegiadas e marcadas pela cultura segregadora. Ele define que é uma filantropia de brancos para brancos.
“É um entendimento duro e a compreensão dessa realidade dói e causa desconforto. Mas precisamos ter coragem para reconhecer isso e dar um passo à frente para diversificar o campo da filantropia”, conclui. 

Fonte: Observatório do Terceiro Setor   
Por: Isabela Alves
Link da matéria: https://observatorio3setor.org.br/noticias/como-o-terceiro-setor-pode-contribuir-para-a-equidade-racial-no-brasil/
Link para a plataforma criada pelo Gife: https://equidaderacial.gife.org.br/